terça-feira, junho 12, 2012

Outra

Vladimir Lestrovoy
"Eu te amo nunca mais".
Foram as únicas palavras que ecoaram naquele ambiente fétido onde passara anos depositando e sedimentando todas aquelas migalhas afetivas acumuladas. Se libertaram, banhadas pelo gosto acre e levemente salgado que escorria pelo canto esquerdo da sua boca - com a força de quem pare uma cria, com o ódio de quem encrava a espada no peito do inimigo.
Os mamilos secos e rijos, os poros abertos, o corpo teso, intrépido, e os pêlos hirtos se enrosacavam num emaranhado de carne e ossos atirado entre as imundas frestas, arrastando-se sobre as pétalas mortas e murchas que se colavam no seu corpo úmido, como parasitas; sanguessugas sedentas, na busca do último suspiro de vida.
Sem dor não há redenção, e a cada corte aberto na sua pele, a cada gota de sangue derramada ela se sentia mais próxima da libertação, do ato final.
Buscou o que nunca existiu - era hora de desapegar-se das lembranças, de desmachar os sonhos projetados sob a visão ilusória de quem a fez acreditar na utopia da felicidade e apagar a luz. O escuro a chamava. As sombras esperavam-na.
Ela sabia que através de alguma fenda ele a espreitava, como sempre: calado, imóvel, obervando seus movimentos, aguardando seu fim lento e gradual. Aqueles brilhantes e maquiavélicos olhos que a perscrutavam numa mistura diabólica de tesão e asco, de desejo e repúdia careciam da certeza da sua morte ou seriam assombrados por toda vida pela nódoa do mal que a construiu - como dividir o ar com a única criatura capaz de dissuadí-lo?
Arrastou-se até a parede com fissuras o suficiente para abrigar as pontas dos estreitos dedos que buscavam o vigor muscular capaz de erguer o esguio corpo, passou a mão pelo interruptor e quando pensava-se que o único movimento possível seria o de apagar a luz, ela abriu a porta.

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