terça-feira, maio 29, 2012

Por todos os amores possíveis

Martin Kippenberger
Com a devida licença… só dessa vez, dá prá fazer tudo outra vez? Faz!
Te entrega, te rende, te liberta – me liberta. Concede provas da existência do que tua boca proferiu.
Coloca o peso do teu corpo acima do meu, me pressiona, me tira o ar, me sufoca de você. Deixa com que esse líquido salgado e quente transborde dos teus poros e escorra até preencher os espaços dos meus.
Vai, te apaixona! Fica de joelhos, beija meus pés olhando nos meus olhos e sorri maliciosamente prá mim.
Desocupa as mãos. Te ocupa de mim, até ofegar descompassadamente.
Mas se entrar, vai até o fundo. Não me venha com metade, raso, pouco, leve ou morno. Arde: me queima.
Manda uma caixa de rosas colombianas sem espinhos, me indica uma leitura, me liga de madrugada, me serve um copo de vinho tinto, deixa escorrer e aprecia – passa a língua na gota que nasce devagar pelo canto da minha boca.
Acende um cigarro, põe entre os meus dentes lentamente: sente através dos teus dedos o calor da minha longa tragada.
Me olha de novo, insiste.
Senta na minha frente e aprecia o que teus olhos enxergam por entre os meus joelhos delgados. Roça teus pés nas minhas coxas, morde os meus – me deixa com vergonha, sem-vergonha.
Me convida. Te convida – entra. Ousa. Arrisca. Me aguça, me provoca, me instiga – te desafia. Joga todas as cartas na mesa – elas nunca te servirão de nada se continuarem nas tuas mãos. 
Faz de novo? Novo. Tudo de - novo?
Passa por essa brecha que ainda se mantém aberta. Entra correndo. Mete o pé mesmo! Invade. Toma conta. Te apossa sem pedir licença, seja mal-educado. Vem cafajeste... Perde o medo, que eu te quero assim, quente e cru. Deixa a armadura na soleira da porta, larga as armas. Entra teso e nu.
E amanhã de manhã, cobre outra vez aquela fresta da janela para que eu durma até mais tarde e, assim, com a língua entre os meus lábios – pequenos lábios – talvez, entre um gemido e outro você ainda me escute te dizer num sussurro baixinho “eu te amo”.

quinta-feira, maio 24, 2012

Banho-maria

Olha a porta entreaberta, olha.
Vem, entra de mansinho. Vê como a soleira está coberta de pétalas brancas? Pisa sobre elas - encosta a base desses pés que antes deslizavam pelas minhas pernas no meio da noite, no fino e delicado tapete que te convida.
Christine von Diepenbroek
Atravessa a sala, observa essa mesa posta, as nossas duas taças, os nossos dois pares de talheres, os nossos dois pratos e as duas cadeiras vazias - aquelas que você comprou para jantar olhando nos meus olhos e admirando o que meu decote revelava cada vez que me inclinava para te beijar. As mesmas que usei como cenário, enquanto me despia vagarosamente para os dois olhos que me fitavam atônitos à espera da próxima cena. Passa a mão sobre a toalha que tempos atrás fora atirada ao chão para saciar a voracidade da nossa libido. Segue pelo corredor, acompanha vagarosamente os caminhos que as pétalas desenham e te deixa guiar pelas ranhuras das paredes que por vezes absorveram o suor dos nossos corpos cálidos e sedentos um do outro. Repara, são as mesmas que machucaram hora tuas costas, hora minhas nádegas, no violento roçar de peles, na freqüente troca de fluídos.
Não entra, mas espia pela fresta da porta do banheiro, como a tua toalha permanece dobrada na prateleira e como o aquele porta toalhas dentro do box continua levemente deslocado - desde aquela vez que no meio do banho, de costas prá você, precisei me apoiar para te sentir cada vez mais no meu espaço (quase dá prá ver meus cabelos molhados presos entre os teus dedos – eu sinto o tesão da tua força a ensaiar o desejo 
brutal).
Para em frente à porta do quarto.
Sente o perfume?
É o mesmo que você sente todas as noites, impregnado na tua pele e que vai te perseguir toda vez que tuas narinas e poros sentirem meu cio.
Só então arromba a porta com a fúria e a sede de quem me guarda e vê como seus lençóis vazios e sem volume ainda desenham meu corpo na tua cama.
Empenha-te nesse teu papel esquecido de macho dominador e me tira desse estado letárgico. Me aguça, me instiga.
Penetra no que você nunca teve de mim. Arranca o produto final dessa amostra grátis que você conheceu.
Acorda aquela putana soterrada em camisolas de algodão, lençóis de linho e sapatos baixos, que você adormeceu com doses homeopáticas de Perrier e deixa com que esse vinho tinto barato escorra pela carne tesa e crua da fera que habita a pele de carneiro, sem se preocupar com as manchas da cama.
Desapega desse figurino de bom moço que você veste todas as manhãs e me serve do que de mais baixo e torpe existe em você, do seu âmago. Me banha com a tua verdade.
Vem seu canalha, me arrasta, me vira: segura minhas costelas entre as tuas falanges – se encaixa.
Encobre meu fêmur com o teu e preenche os espaços vagos com o movimento insano da busca pelo gozo.
Mas não me solta! Não deixa com que essa sem-vergonha se vá, abrindo espaço para aquela insossa que habitou esse corpo de pecado.
Me cospe água - me sorve, me absorve e me engole álcool.
Te embriaga desse veneno que vc nunca teve o prazer de provar, porque é por ele que você sobreviverá - essa ressaca de mim será o teu castigo.

domingo, maio 20, 2012

Lilith

Christine von Diepenbroek
Os dedos macios percorrem a parede rugosa e úmida. Algumas ranhuras machucam sua pele, na busca pelo interruptor. Superfície lisa, o encontro da digital humana com a frieza do botão. Luz acesa. Seus olhos fotossensíveis sentem o choque da claridade sobre a pupila dilatada. O toque sutil e passageiro da força da luz provoca a retração. A visão desfocada o faz desconhecer o ambiente por alguns segundos. É necessário tempo para que o corpo se acostume com o que lhe parece desconhecido. Que lugar é esse? Quem são essas pessoas? Na tentativa de reconhecer o lugar, sente o cheiro da lúxúria nos lençóis ainda desarrumados sobre a cama. Os objetos quebrados, jogados no chão desenham os traços da ira. Os pratos e copos sujos sendo revirados pelos ratos e baratas espelham a face da gula e da preguiça. O dinheiro rasgado sobre a poça de sangue traz à tona lembranças da sua avareza desmedida e da dor que ela pode causar. A inveja e o orgulho deturpam seus pensamentos, enegrecem sua alma e o fazem reconhecer tudo. A vida sob a luz dos refletores.Quarto sujo, mundo insano, corpo de pecado...

sexta-feira, maio 18, 2012

Queda-livre

Ela jurou que daquela vez seria diferente. Por isso juntou todas aquelas migalhas afetivas acumuladas ao longo dos meses em que passou curando sua ressaca emocional e guardou no armário. Não jogou fora porque ainda sentia-se insegura – talvez precisasse delas novamente.Ela sabia que não era o momento certo; não havia planejado, mas acontecera. Portanto, como de costume, abriu o peito e saltou. Não atirou-se – simplesmente abriu os braços e deixou-se cair, de olhos fechados, sem pensar.
Muitas vezes fizera isso, mas as diversas contusões, arranhões e os dias de recuperação não a ensinaram sentir medo. Sim, ela sabia da existência do medo, mas a vontade de sentir o vento tocando seu rosto novamente, a emoção do salto, não lhe permitiam ter medo da queda. Ela podia ser macia ou não. Mas isso também já não importava.
E jogou-se. Deixou-se cair.
A queda foi rápida, excitante, apaixonada e sempre de olhos fechados. E ela sentiu novamente o vento tocando seu rosto, seus lábios, entrando pelas frestas da sua roupa encostando levemente o seu corpo todo, balançando seus cabelos. Era bom sentir tudo aquilo outra vez.
E caiu.
E machucou-se.
Abriu o armário em busca de suas migalhas afetivas e elas ainda estavam lá, mas já não bastavam para curar sua dor.
Então libertou-as.
Então libertou-se, esvaziou-se.
E soube o que era o medo.

segunda-feira, maio 14, 2012

True Lies

Eu volto. Eu sei que todas as noites e todos os dias você finge, mas eu sempre volto.
Acha que não sei que as lingeries que veste fingindo me esperar nunca foram compradas com meus desejos no seu pensamento ou com o propósito de me seduzir?
O batom vermelho, os lençóis limpos e perfumados – pensa que não sei que outra boca encosta nesses lábios e que os lençóis limpos só escondem a luxúria espalhada naqueles que estão à espera da água purificadora?
Não... não pense que me iludo achando que a taça envolta em meus dedos agora nunca encheu as mãos de outro... Não sou tão tolo... Mas mesmo assim eu a seguro. Eu bebo do mesmo vinho com que banhas outras gargantas, o mesmo com que embriagas outras presas – e me farto.
Sinto tua pele recém percorrida pela navalha, lisa, macia, perfumada, pensando no quanto contribuo para que sempre esteja assim pronta para todos; te dou presentes, te encho de tudo o que mais gosta, mesmo sabendo que não é por mim ou para mim que te prepara ardilosamente.
Eu volto – mesmo sabendo que você me engana, eu volto.
Volto porque sei que todos os seus gritos são falsos – sei que teu prazer não é verdadeiro. Volto por saber que todas as vezes que a vejo cravar nos lençóis as unhas esmalatadas em vermelho, morder o travesseiro escondendo o rubor da sua descarada face ou abafando os urros de falso deleite você está apenas no segundo ato da sua encenação.

(Enquanto balança os quadris me encarando felinamente meus olhos te dizem o que minha boca nunca pronunciará: quebre a perna! Seu sucesso na dramatização é minha glória).
Eu volto porque mesmo assim, fingindo, você é obediente, minha putana. Vai, assim... Faz como eu mando... Fica de quatro porque eu quero te ver... bem-mandada.
Faz prá mim, faz... aquela cara de quem ta gostando, faaaaaz... Mas vê só se for "bem-feito" porque não é à toa que escondo meus - verdadeiros - olhos sobre tuas costas; ainda sou aluno na arte da dramatização.
Vamos, grita! Me pede pra te segurar com força pelos cabelos, vai implora! Talvez assim eu esqueça do seu teatrinho e também finja acreditar que você esta mesmo gostando.
Se me aproveito das tuas mentiras é porque assim fica mais fácil voltar todos os dias e te tratar como merece, sua farsante dissimulada.
Sugo até ultima gota desse líquido maldito – me alimento desse néctar que se torna fel quando me despeço. O amargo que fica impregnado na minha língua durante todo dia é o que me faz voltar.
Ah, mas não estraga tudo agora com esse pinguinho de verdade, não... Finge só mais um pouquinho... Deixa-me ver a hipocrisia desvelada nas tuas pupilas retidas – não me decepciona agora!
Teu espetáculo também me permite ocultar minhas verdades sem culpa.
Vamos, grita – mas grita como urram as feras, para que eu esqueça que de fato o que eu gostaria era que você estivesse sentindo.
Encanta-me te ver fingindo pra mim.
Mente de verdade; mente com sinceridade, que assim talvez eu te dê o presente de um afago depois do gozo.
Se teu espetáculo me convencer, talvez eu consiga continuar voltando e te fazendo crer que realmente não te quero – e que é por isso que eu venho.
Não... não te preocupa com fatores morais... Ora... Se a capacidade dos hominídeos de mentir é percebida tão cedo, e é quase universalmente inerente ao desenvolvimento humano, você não será considerada pecadora. Fique tranqüila, pois meu código ético determinou que tua verdade não é necessária – no que se refere a você, sou adepto ao pragmatismo, considerando como verdadeiro aquilo que mais contribui para o meu bem-estar. Nesse caso: tua falsidade.
É por isso que eu volto; saber que é pra mim e por mim que você finge todas as noites, sua Peça só entra em cartaz e suas cortinas só se abrem quando eu chego. Eu volto pelas tuas mentiras sinceras; porque você me convence diariamente de que acredito que só volto pelas tuas mentiras.

____________________________________________
Som-ambiente (clique-veja): The Doors - Light My Fire
Gorjeta: Ouro branco, ouro preto, ouro podre. Ele enche os ouvidos dela de ouro das Minas - suas minas antigas barrocas de volutas e seu ouro ficou enfeitando seus ouvidos e olhos e depois todo o corpo em vestimenta de brilhos que se insinuaram por toda ela o que a fez sentir-se dançante e em rodopios transmutou-se numa raninha e assim acreditou e assim era, pois assim ela se via nele, em seus olhos que a olhavam meio torto como se não sustentassem seu fulgor. (Brandão, Ruth Silviano - Puro Ouro)