quarta-feira, outubro 23, 2013

Orquídeas (editado)

Jonathan Charles
Abriu os olhos vagarosamente.
Levantou os lençóis - um sopro quase glacial ouriçou os pelos do seu corpo. As pernas demoraram alguns instantes para manterem-se firmes no chão - cambalearam, como seus pensamentos nos últimos meses. Caminhou de pés descalços em direção ao banheiro, nua mesmo, como deitou. Não se importaria com as janelas das outras peças da casa abertas, não fosse pela luminosidade que tomava conta de tudo e a cegava. As mãos tateavam as paredes, as portas. A maçaneta. Girou. [...] Olhou-se no espelho - sim, ela ainda era real, ela ainda estava ali. Ela, suas carnes, seus músculos e todos os seus pensamentos não tinham adormecido, mesmo com as diversas noites de sono, que perduravam estimuladas pelo uso sucessivo e abundante de drogas.
Ela fugia constante e diariamente, mesmo sem sair do lugar, e na sua incompetência em cumprir a tarefa, quanto mais corria, mais próxima de si ficava.
Ainda mirava-se no espelho. Durante alguns pouquíssimos segundos de sanidade lembrou-se da frase lida em um livro: Copulations and mirrors are abominable.
Sim, pensou, são de fato detestáveis e execráveis: multiplicavam o homem, o humano - sua imagem e suas formas, com tudo que vemos e o pior, com tudo que não vemos. Multiplicava, e multiplicava... em uma progressão aritmética sem fim.
E ela não queria mais a sua imagem refletida - a beleza pode ser 
cruel com seu hospedeiro, como em uma relação parasital, na qual o desenvolvimento deste chupim tende a produzir uma adaptação confortável do albergueiro ao patógeno.
Sentiu que como se tivesse uma peste, a patogenia deste parasita apossada de seu corpo e sua mente, coordenando seus movimentos, seduzindo e inebriando os alheios. Percorreu os dedos pela pia gélida e lisa. Sem olhar para baixo enfiou os dedos na gaveta com cuidado até sentir o aço frio. A outra mão deslizou pelos cabelos loiros ainda ondulados, amassados pelos dias sufocados no travesseiro. Lentamente começou a poda – como se estivesse se despindo para um amante observador: devagar, apreciando cada sensação, cada som, cada piscada. As mechas resvalavam pelo seu corpo, num toque tão sutil e excitante, que fazia com que ela não percebesse a fotografia que se formava à sua frente. Então sentiu como se decepasse as cobras da cabeça da medusa e com elas tudo o que a atormentava – aquela perfeita moldura de rosto sendo desfeita, o belo ostensivo se espalhando pelo chão, como detrito, entulho, junto com os sonhos, com a dor e com tanto pranto derramado. Seu corpo e sua vitalidade secaram com as lágrimas que se foram ralo abaixo. Os ossos saltavam sobre a carne, como a verdade quando descoberta.
E aqueles olhos permaneceram ali; aquelas duas pedras verdes reluzentes ainda a fitavam, como quem indaga e julga; como quem condena e executa. Arrastou a tesoura pelo pescoço e, juntando a pouca força física que ainda restava depois de dias em jejum, afastou a mão o mais longe que pôde do seu corpo e cravou o insensível e metal no peito.
E antes de cerrar as pálpebras ainda sentiu a resistência das suas cartilagens costais na inútil tentativa de expulsar o intruso: a dor finita.