quarta-feira, setembro 12, 2012

Puzzle

Marcello Romeiro
O sol atravessa os pequenos orifícios da janela te convidando para o bailar dos raios que dançam lentamente nas paredes do quarto e refletem desenhos incompreensíveis.
Você dorme... Há tempo demais você dorme.
Como uma princesa – certinha e inócua.
Me acostumei com você assim, quietinha, sonolenta, domada: incompleta.
Eu busquei por isso – eu me desenhei para você, e nesse rascunho de mim você só cabia a traços, sem arte-final. Eu me moldei para me encaixar nos seus espaços em branco e assim ficamos: duas peças inacabadas que unidas pareciam formar uma só.
Apenas julgávamos se complementar, mas na verdade eram dois pedaços espremidos e adaptados à forma onde deveriam caber.
Doloridos, sufocados, encaixados a fórceps e quase sem ar – pseudomortos.
Hoje você vai acordar. Hoje você vai explodir e transpassar todas essas paredes que te apertam. Vai inspirar e sentir seu peito se inflando como quando submergimos de longa apneia, retomando bruscamente a comunicação do ar com os pulmões.
Seu croqui desbotou, seu esboço ficou ultrapassado.
Seu modelo correto pode ser elegante, mas não te cai bem depois que você desce do salto – te despe desse modelito démodé e fica nua prá mim.
Abandona a princesinha com seu vestidinho engomado na soleira da entrada.
Então, depois que você estiver assim, bem à vontade, esparramada, soltinha, vou me virar prá esse teu lado quentinho e me encaixar em cada um desses ossinhos: eu vou sentir cada um deles – me ajustar a cada curva, cada reta, cada espaço. Espremer minha pele contra a tua e grudar meus poros à vácuo nos teus para que você não se contorça tentando se esgueirar.
Enquanto uma das minhas mãos segurar teus dois punhos a outra contornará tua cintura, na procura pelo calor úmido do teu interior.
Com meu nariz submerso nos teus cabelos vou te inspirar como se fosse meu último minuto de vida, até que o cheiro suave e fresco da princesinha abra espaço para esse teu odor de mulher libertina que ficará impregnado em mim.
E assim, com você nos meus dedos, que vou moldar minha dentição nesse seu pescoço estrênuo – e você vai acordar sentindo a dor da minha presença, do jeitinho que eu sei que a danadinha gosta.
Com meus toques impróprios você vai abrir lentamente os olhos, desviando da luminosidade escassa, mas incômoda. Quando eu enxergar essas duas jades se esgueirando da claridade, e tua sobrancelha se arqueando com aquele sorriso maroto no canto da boca é que vou ter certeza do seu verdadeiro despertar.
Livrando-se das minhas mãos e envergando-se como uma gata, bem devagar, te verei levantando-se como se preparasse para um ataque - percebo seus dourados pelos se ouriçando. Mas você me espiará por entre as pálpebras levemente entre abertas, e em movimentos muito melindrosos e friamente calculados para me fascinar ficará de joelhos e sentará sobre seus calcanhares friccionando as nádegas redondas com as pernas entreabertas na minha direção.
Mesmo com a visão turva, o suor escorrendo pelo meu pescoço e uma leve dormência nos dedos meu corpo vai te dar a resposta para o convite que vejo no fim da linha dos abaulados joelhos.
Vou te sorver com a velocidade e eficácia que a areia do deserto sugaria o pingo d’água. Vou te engolir inteira depois de te hipnotizar, como a cobra devora suas presas. Vou te tragar como o condenado absorve, na profunda sucção, a nicotina do último cigarro.
Nessas tuas retas é que encaixo minhas curvas, e onde não caibo, invado, sem me espremer e sem te deformar porque é desse desconexo, incoerente encontro de peças é que nos completaremos. Nas nossas imperfeições é que nos encontraremos – no que não devemos é que despertamos nossos mais verdadeiros instintos e desejos, no que escondemos entre as frestas dos encaixes falhos é que dividimos nossa libertinagem e volúpia. Por entre as curvas dos teus seios o gozo que precede a quietude.

domingo, setembro 02, 2012

Fotografia

By: Terry Grant
Uma gota de vinho pinga no seu colo: o suficiente para atiçar seus sentidos. O pingo escorre por entre os poros, transborda no tecido da camisa cor de rosa antigo.
A música a envolve - ela levanta-se suavemente da poltrona, arranhando delicadamente as unhas pelo veludo, como se tentasse penetrá-lo - como se fosse pele.
Olhar fixo; o leve fechar das pálpebras, mesmo com as pupilas estáticas parece me convidar. As mãos que se apoiavam vigorosamente saltam dos braços aveludados da poltrona e deslizam por entre suas coxas quentes, sobem pelo ventre, sentindo a breve resistência da penugem macia. Ela segura o cálice de vinho com uma mão enquanto a outra continua percorrendo o caminho do seu corpo – me olha pela transparência do copo, me sinto invadido. Fita-me fixamente, indiscretamente, descaradamente como se eu pudesse senti-la se umidificando, como se eu pudesse sentir, daquela distância, seu odor de fêmea do cio.
A borda do cálice encosta no pescoço e enquanto ela se estica como uma gata mirando minha reação com os cantos dos olhos ela entorna-o. Vagarosamente sua roupa se cobre de vermelho, deixando seus seios rijos, como se quisessem transpor a fina camada do linho.
As pernas curtas e bem torneadas exploram a lateral da poltrona, onde ela apoia um dos seus pés - sedoso e perfeitamente branco. À meia-luz - com a luz ideal percebo todos os seus pequenos detalhes... O vinho segue escorregando pela alva pele enquanto as mãos vão acompanhando esse caminho e espalhando a concupiscência pelo seu corpo, que vejo arder. A boca entre aberta mostra os dentes de mesmo escarlate das unhas e dos pés, e liberta o ar, a respiração ofegante e um breve sussurro. Matizes verdes saltam dos olhos úmidos enquanto as narinas movem-se em descompasso.
Poros contraídos, pupilas dilatadas, lábios molhados, pelos ouriçados e, embalada pelo som que ecoa das caixas acústicas vejo aquele corpo se movendo sensual e vagarosamente. Seus quadris a dançar suavemente me hipnotizam. As falanges movem-se, impelidas pelo próprio peso, com leveza, pela superfície lisa e desnuda, como se a tocassem pela primeira vez. Desvendam toda malícia escondida pela falsa inocência.
A mão no botão, a calça no chão - o sexo desnudo.
O cálice na horizontal, a blusa verticalmente arrancada, a pele esticada pelos braços ao alto e os seios enrijecidos pelo toque do frio e rubro vinho.
Todos os espaços do seu corpo invadidos, todos os fluídos corpóreos em ebulição.
A lente da câmera, o êxtase, a fotografia.